Quinta-feira, 13 de Janeiro de 2011

Clara Ferreira Alves

 Os escravos do Sinai «

    Em nome da preservação da civilização ocidental deixamos que se convertam em escravos. 

 Nesta altura do ano os anúncios de turismo do Egito mostram as maravilhas do mar Vermelho e do deserto do Sinai. Montanhas e escapas amarelas e rosadas, com crepúsculos gloriosos e insinuações bíblicas. O Sinai é um dos desertos mais belos do mundo e a propaganda mostra o melhor desse deserto. Não mostra o pior, a rede de tráfico de seres humanos que atua no Sinai, mais exatamente no Norte do Sinai. O tráfico está nas mãos de tribos de beduínos armados, que cobram cerca de 2 mil dólares por cabeça para passarem emigrantes do Corno de África para Israel. Em 2010, entraram em território israelita cerca de 10 mil imigrantes ilegais, cerca de 700 por semana só no mês de novembro. Israel está a construir uma barreira que impeça a entrada de mais imigrantes. No princípio de dezembro, 250 destes escravos, chamados refugiados, todos da Eritreia, um país-fantasma que fornece mão de obra escrava para vários países, foram aprisionados em contentores. Os traficantes beduínos pediram-lhes 8 mil dólares por cabeça para os libertar e a situação entrou num impasse. Quem pagaria o resgate? Ninguém, justamente, e os 250 da Eritreia (que já tinham pago para chegar ali) foram amanhecendo nos contentores, as mulheres repetidamente violadas e os homens espancados, torturados com choques elétricos, agrilhoados e seviciados. Obrigados a beber a própria urina quando tinham sede. A água é uma mercadoria rara neste Sinai terra-de-ninguém. Estando o Sinai nas mãos do Egito, a reação egípcia é um modelo de violação dos direitos humanos. O Governo egípcio, que sabe da existência dos traficantes e os encobre, começou por negar a existência dos sequestrados da Eritreia. Dada a pressão internacional das ONG, do ACNUR (de António Guterres), dos observatórios de direitos humanos, do Parlamento Europeu e do Papa, acabou a tentar resolver o problema, em palavras. Na prática, o Egito continuou a ignorar aquela gente. Dizia-se que 100 desses refugiados teriam sido vendidos a outro grupo de beduínos, e que alguns deles teriam sido executados. O quadro torna-se obsceno quando pensamos que Susan Mubarak, a mulher do Presidente do Egito, Hosni Mubarak, é a cabeça visível de um anúncio (que passa na CNN) e de uma campanha - End Human Trafficking Now! - contra o tráfico de seres humanos, um anúncio muito 'humano' e com vedetas como Richard Branson confessando a sua admiração por descobrirem que no século XXI ainda existe escravatura. E foi Susan Mubarak que, ao mesmo tempo que os refugiados apodreciam em contentores sob o sol do Sinai, organizou uma conferência internacional para discutir a desumanidade do tráfico. Nas televisões, Mubarak foi entrevistada e confessou a sua extrema preocupação com o problema. Ninguém se lembrou de lhe perguntar por que é que estando tão preocupada com a escravatura não se lembrou de pedir ao marido que interviesse no Sinai, libertasse os refugiados da Eritreia e acabando com as redes de beduínos traficantes. Se Mubarak pusesse tanto empenho em exterminar estas redes como em silenciar os adversários políticos, teria sucesso. As redes atuam dentro de território egípcio graças à corrupção e silêncio das autoridades egípcias, que fecham os olhos desde que os traficantes não perturbem a ordem pacífica do Sinai para turistas. A rede vai de África ao Médio Oriente e Golfo Pérsico e uma ação concertada dos países envolvidos poderia remediar a situação. O Egito, em compensação, preocupou-se com os tubarões brancos de Sharm el-Sheikh que mataram e feriram turistas europeus. E acusou Israel de ter 'colocado' os tubarões no Mar Vermelho para afastar os turistas da estância egípcia. A indiferença internacional perante este drama e outros semelhantes, como o do naufrágio dos refugiados iraquianos e iranianos na Ilha do Natal, cuja morte em direto toda a gente pôde apreciar no conforto do lar, é generalizada. Os refugiados do Iraque não têm para onde ir nem onde ficar. Alguns, como os do barco da Ilha de Natal, território australiano ao lado da Indonésia, tentavam alcançar o paraíso em terra firme. Morreram despedaçados e atirados pelo mar contra os rochedos. Tal como os afogados do estreito de Gibraltar. As políticas anti-imigração atiram esta gente para um limbo político e identitário, negando-lhes direitos humanos. São seres humanos condenados à morte, abandonados à sua sorte, pelo 'crime' de tentarem escapar da miséria e da prisão. Em nome da preservação da civilização ocidental deixamos que se convertam em escravos. A mesma civilização ocidental que exalta as virtudes dos empreendedores que tomam o controlo das suas vidas e não se resignam.

Texto publicado na revista Única de 8 de janeiro de 2011

publicado por alertamadrugada às 20:45

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